"Nómadas Digitais" versus "função pública portuguesa"
Por Donato Macedo
A transição para a economia digital está na ponta da língua da governação madeirense.
"Economia digital", "transição digital", "tecnologias da comunicação" e demais ramagens da mesma árvore semântica ecoam do vale à montanha pelos majestosos vales. A ideia de que o carácter ultraperiférico da Madeira, só pode ser vencido pela tecnologia digital com sede na Madeira, de forma a garantir um salto qualitativo e quantitativo na prestação de serviços à distância, com recurso às novas tecnologias e de novas gerações mais qualificadas, é algo estratégico e competitivamente tangível. A realidade pandémica veio acicatar algo que já se sabia, pois a roda foi já inventada há muito tempo, que são as novas formas de organização do trabalho, a que muitas empresas já recorrem há anos, fruto do avanço tecnológico, da qualificação e da globalização económica.
Tenho uma declaração de interesses nesta análise enquanto trabalhador do Estado desde 1993, tendo já percorrido várias administrações públicas, desde a central, autárquica e regional, em distintas funções e categorias.
Retomando a questão pandémica e o seu período mais crítico, em que obrigou muitos trabalhadores a ficarem confinados em casa, na Administração Pública houve algo (que também já se sabia), mas que no confinamento ficou mais que provado: há trabalhadores a mais e também há trabalhadores mal distribuídos. E quem negar isto, mete seguramente a cabeça debaixo da terra. O problema é antigo e constitui um dos muitos bezerros de ouro intocáveis do "sistema político" nacional, com forte valorização política-eleitoral. E nos sítios onde quase ¼ da população empregada trabalha da administração pública ou no setor empresarial do Estado (como é o caso da RAM), o assunto é mesmo sensível, sobretudo para um funcionário público como eu.
Mas, seguindo em frente, porque para trás, nem para tomar balanço, a pandemia mostrou que o teletrabalho em imensas atividades da função pública, é uma forma perfeitamente viável da organização do trabalho com imensas vantagens para o Estado e para o funcionário. Só não traz vantagens para o "sistema" implementado, incluindo desde logo algum vazio legal, apesar de alguns avanços e muitas promessas de alteração da regulamentação. E o teletrabalho não é vantajoso para a forma férrea e inamovível ainda implementada duma (desor)ganização do trabalho público, e sobretudo para justificação da enorme constelação de cargos dirigentes. Até porque só se pode justificar chefias para chefiarem "alguém" presencialmente, que ali está...de corpo presente, independentemente da produtividade, da "natureza" dos objetivos fixados, para não falar da aberração das quotas dos iluminados excelentes e outros desocupados "lambe-cus" do sistema.
Ora, a pandemia trouxe a nu aquilo que se sabe. Há excesso de funcionários para justificar algumas chefias e prémios políticos a que nem sempre corresponde o devido mérito. Por isso, as virtudes das formas de trabalhar remotamente, só são válidas para os "outros" teletrabalhadores, sejam eles nómadas e "nerds" tecnológicos qualificados, por mais poupanças que os "autóctones" representassem para o Estado, para menor conflitualidade laboral com o esvaziamento da ação sindical, e maior pegada ecológica com as poupanças da mobilidade pendular casa/trabalho, enquanto preocupação ambiental da poluição tão cara nos nossos dias.
Repescando o início, o Estado é pródigo em endeusar as soluções vanguardistas dos privados, mas está enquistado sobre si próprio, com processos e procedimentos fossilizados, mascarados por pseudo-sistemas de avaliação de desempenho martelados e descredibilizados, apenas porque convém ao "sistema". O mesmo sistema que ao fim e ao cabo, somos todos "nós" que tacitamente pactuamos com esta evidente ineficiência burocrática...